12.12.05

MARIA LÚCIA LEPECKI - BILHETE (LONGO) AO AMIGO

Meu caro Pacheco Pereira:

Para começar, uma confidência: em mais de trinta e oito anos de exercício de crítica, por três vezes me aconteceu ser compelida a apreciar um livro (em textos para jornais) não exactamente num artigo, mas em forma de carta. Com esta que lhe escrevo, a quarta, chego à média de uma “epístola ao autor” a cada nove anos e qualquer coisa. Nada que se veja, mas de qualquer forma regista-se.
Você me perguntará o por quê da forma epistolar, a resposta nada tem de segredo. Quando um livro não sai de dentro de mim, ou não saio eu de dentro dele, querendo, contudo, dizer o que penso e sinto, o único recurso é ficcionar um face a face com o autor, uma conversa sem maiores implicações, é puro desejo de diálogo.

Já tive oportunidade de lhe dar a saber, aquando da publicação do primeiro volume de Alvaro Cunhal- uma biografia política, a profundíssima impressão que esse passo inaugural do seu trabalho me deixou. Corri depois, para o segundo volume, e, há poucos dias, para o terceiro. A “profundíssima impressão” manteve-se, essa sua obra integra já, de pleno direito, a minha memória dos grandes textos biográficos que ao longo da vida fui conhecendo. Porque eu, outra confidência, sou muitíssimo chegada a biografias, são coisas que nos acontecem…
Sobre dois ou três aspectos do último volume eu gostaria de falar consigo, não garantindo, contudo, que por dois ou três me ficarei: tal como as cerejas, as ideias tamém saem em penquinhas quando estamos a puxar apenas uma. Mas logo se verá, e entretanto vou passando ao que interessa.

Gostava de dizer, preto no branco e antes do mais, que o seu trabalho sobre Alvaro Cunhal é, no meu entender, perfeitamente extraordinário, por várias razões. Pelo investimento na investigação, pelo cuidado permanente na referência de fontes ( em notas de rodapé), pelo planear da narrativa. Acresce a isto a sensibilidade para trazer pormenores (sempre fundamentados em documentação) que vivificam as figuras humanas, tornando-as pessoas, para além de personagens históricas. Como se não bastasse, você também torna palpáveis, visíveis ( em segmentos descritivos) muitos dos lugares onde se passam os factos. Resulta de tudo isto, para além de um retrato e de uma biografia de Alvaro Cunhal, um espantoso quadro da atmosfera do Portugal fascista, daquele país soturno, lúgubre, claustral, que felizmente já não é o nosso há mais de trinta anos . Espanta-me e comove-me no seu livro o equilíbrio entre a postura do historiador e a subtilíssima presença de uma emocionalidade nascida do que entendo ser a sua admiração pela pessoa do seu biografado e das muitas outras que, junto com ele, fizeram uma parte tão absolutamente importante da História de Portugal no século XX. Um grande livro, Pacheco Pereira, um trabalho de paciência, de persistência, de extraordinária dedicação. A ele se aplica, com inteira justiça, um adjectivo: monástico.

Para fazer a biografia de Cunhal, você teve de conviver com, e administrar o,“ dilemma of portraying change within a framework of permanence” , para recordar palavras de quem entende da questão e dela se ocupou. Bom convívio e boa administração resultam naquilo que o seu leitor vê: ao lado da vida política de Alvaro Cunhal aparece um seu retrato, mais pessoal, que o Pacheco Pereira constroi ( sem dizer que o está fazendo), abordando um outro lado da personalidade do biografado: aquele onde o homem politico e o homem “pessoal” ( passe a expressão) se tornam mais nítidos, mais “palpáveis” – e definitivamente mais completes, pela consideração da obra plástica e ficcional de Cunhal. São sequências crítico-analíticas muitíssimo interessantes e reveladoras da sua ( de você) extrema, e cultivada, sensibilidade artística.
Como não podia deixar de ser, porque ninguém vive sozinho, a biografia de Álvaro Cunhal arrasta consigo outros percursos de vida ( e, até, outros retratos, embora mais delidos). Acompanhamos, então, outras e numerosas figuras ( dirigentes ou simples militantes) do PCP da época, ou antigos militantes,ou amigos e apoiantes de vários quadrantes. No cômputo final, o seu livro está cheio de personagens, que rodeiam o protagonista em planos sucessivamente mais recuados, até se tornarem sombras na linha do horizonte. Cada um deles tem o seu papel, nenhum deles foi dispensável para a construção daquela vida a que você, com razão atribuiu ( na sessão pública na livraria FNAC) uma “estrutura de tragédia”.

Devo referir que você retrata, ainda ( como é natural e obrigatório), o regime e os seus muitos braços. Tem o seu livro então, ao que creio , dois grandes movimentos. Um vai na direcção do centro da sua atenção, Alvaro Cunhal. O outro movimento alarga-se até os mais remotos limites das vivências portuguesas da época, pois esta é uma história que, dizendo respeito a um, o biografado, importa a toda a comunidade nacional. O ir e vir entre o centro e a periferia, a implicação absoluta do particular (Cunhal) no processo histórico do colectivo dá ao seu trabalho, Pacheco Pereira, uma dimensão épica que, sendo sem dúvida adequada ao assunto, nem por isso perde em capacidade de mobilizar a emoção e a inteligência do leitor. E o modo específico da organização discursiva deste terceiro volume ( e, aliás, dos que o precedem) empresta uma extraordinária grandeza a todos os eventos, a todos os sofrimentos, a cada uma das emoções que terão, ou poderão ter sido, experimentadas pelas personagens.

Sobre a dimensão ( ou atmosfera, se você preferir) épica desse terceiro volume, mais um pormenor, antes de terminar. No fecho, precisamente no último parágrafo , você conjuga, de maneira magistral e muito comovente, as dimensões humana e política de Álvaro Cunhal. Lendo esse fecho, o leitor enxerga, retratado como pessoa inteira ( porque feita também de afectos, amores), o lutador e o politico que tinha vindo a conhecer ao longo de mais de seiscentas páginas. As suas palavras, Pacheco Pereira, são assim:
Com quarente e seis anos, a sua [de Cunhal] vida pessoal mudaria significativamente a muito curto prazo_ irá conhecer uma companheira e ter dela uma filha. A sua acção política levará Cunhal a tomar de novo conta da Direcção do partido e à afirmação indiscutível, nas décadas de sessenta e setenta, como um dos grandes dirigentes comunistas mundiais, internacionalmente reconhecido, cujas decisões moldaram a história de Portugal e das colónias portuguesas até ao dia de hoje.
Uma nova companheira, uma filha e a afirmação como grande líder comunista mundial :eis, meu caro amigo, o que eu chamo “ final solar”, voltado para a vida e para o futuro. Uma pessoa lê e mais uma vez se comove por causa de Cunhal, mas também por causa de quem com tanto rigor e tanta beleza lhe soube escrever a história. E dentro da moldura que na nossa memória circunscreve o livro ficará também o seu retrato, Pacheco Pereira, ao lado do rosto do homem cuja vida você quis contar.

Aí tem você um pouco do que gostaria de conversar consigo. E aqui tem o meu abraço

(Maria Lúcia Lepecki)

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