PAULO PENA - O COLOSSO DE PACHECO (VISÃO, 1/12/2005)
O novo volume da biografia de Cunhal aborda algumas das questões mais delicadas da história do PCP: das execuções às purgas
Afinal, de onde vem o mito Álvaro Cunhal? A imagem marcante, quase lendária, do dirigente comunista, foi em grande medida forjada no período em que Cunhal esteve preso, sublinha José Pacheco Pereira, no terceiro volume desta Biografia Política, O Prisioneiro (ed. Temas e Debates, 748 páginas). Desde os anos 50, essa imagem do «melhor português», o verdadeiro «democrata», moldou a figura do advogado preso no Luso para os mais jovens, que nunca chegaram a conhecê-lo, senão após o 25 de Abril de 1974. «As campanhas pela libertação de Cunhal, repetindo--se ciclicamente desde 1953, foram elementos fundamentais para a criação da mitologia (...) no movimento comunista e nos meios do ‘contra’ em geral. (...) Nos retratos desenhados que se publicam nessa altura – e os desenhos são então mais importantes do que as fotografias, até porque estas eram mais antigas e não as havia recentes –, Cunhal aparece sempre mais novo do que já então era, com um ar um pouco de criança séria e triste, mas com um aspecto duro e decidido. Esta iconografia dá um rosto a quem o não tinha.»
Este é, então, um período de tempo em que o biógrafo se aventura por um quotidiano sem «história aparente», «feito da repetição dos mesmos gestos vigiados, numa sucessão de horas, dias e anos, confinado em duas prisões de alta segurança: a Penitenciá-ria e o Forte de Peniche». À VISÃO, Pacheco Pereira adianta que este foi o livro mais difícil: «Foi extremamente trabalhoso, quase como fazer renda... É um período sobre o qual quase não há fontes.»
Não se julgue que este livro não procura encontrar nessa rotina matéria para boas descrições e curiosas revelações sobre a atitude e a vivência íntima de Cunhal nas prisões do regime. Contudo, para ultrapassar esta ausência de actos públicos de Álvaro Cunhal, Pacheco Pereira opta por mostrar, em pormenor, a história, paralela, do comunismo português. «Não é possível escrever uma biografia de Cunhal sem ao mesmo tempo interpretar a história do PCP», adverte o autor, na nota introdutória. Pacheco Pereira fá-lo, recorrendo a todas as fontes disponíveis, como os testemunhos obtidos junto de importantes dirigentes e ex-dirigentes comunistas e a documentos organizativos do partido. Sendo o primeiro livro desta biografia publicado após a morte de Álvaro Cunhal, continua a ser uma obra «presa às fontes».
Os negros anos 50
O livro começa com uma frase que dá o mote para o período mais negro da vida do dirigente: «Estava consumada a prisão. Os presos, Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, foram de imediato levados para o Porto.» Ali, continua o relato, cativante, começa o calvário dramático dos três presos políticos, capturados numa operação policial no Luso. Começa o isolamento e a tragédia particular do ex-tarrafalense Militão Ribeiro (que morre na prisão). Segue-se a defesa de Cunhal no Tribunal Plenário, de improviso, várias horas, defendendo, ideologicamente, o comunismo e colocando no banco dos réus os acusadores e a ditadura. O que sobra da direcção comunista refaz a sua estratégia.
Um dos aspectos mais interessantes deste livro é o da luta contínua, a partir de 1949, entre os vários elementos da direcção comunista (sobretudo a subida, contestada, de Júlio Fogaça ao Secretariado) e a ruptura com a oposição não comunista (Cunha Leal, António Sérgio, Norton de Matos). Estes dois movimentos estão na origem da mais conhecida inflexão do PCP: o «desvio de direita» que só terminará quando Cunhal e os restantes evadidos de Peniche, já na década de 60, iniciam o caminho que culminará, em 1964, com o documento central da estratégia comunista: o Rumo à Vitória.
Entretanto, há que sobreviver à década de 50, a todos os títulos, um período de refluxo e de ressaca. Pacheco Pereira traz à luz as circunstâncias pouco claras dos assassinatos de Aurélia Celorico, Manuel Lopes Vital e do ex-membro do Comité Central, Manuel Domingues. A morte destes três militantes com responsabilidades na organização nunca foi, cabalmente, explicada, e decorre num período em que as «traições» (entrega de nomes e factos à PIDE) abalam a confiança na organização clandestina. É também um período de «purgas» na cúpula e de afastamento de alguns sectores intelectuais.
É neste cenário, pouco auspicioso, que vão decorrer alguns dos acontecimentos mais relevantes para a história do comunismo, como o XX Congresso do PC da União Soviética, com as suas críticas a Estaline, e a invasão da Hungria pelo Exército Vermelho. Em Portugal, são os anos em que desponta a «questão colonial» e, em 1958, «o ‘furacão’ Delgado». Quando Cunhal e os restantes nove dirigentes do PCP se evadem do Forte de Peniche, em Janeiro de 1960, o mundo mudara, e muito.
Afinal, de onde vem o mito Álvaro Cunhal? A imagem marcante, quase lendária, do dirigente comunista, foi em grande medida forjada no período em que Cunhal esteve preso, sublinha José Pacheco Pereira, no terceiro volume desta Biografia Política, O Prisioneiro (ed. Temas e Debates, 748 páginas). Desde os anos 50, essa imagem do «melhor português», o verdadeiro «democrata», moldou a figura do advogado preso no Luso para os mais jovens, que nunca chegaram a conhecê-lo, senão após o 25 de Abril de 1974. «As campanhas pela libertação de Cunhal, repetindo--se ciclicamente desde 1953, foram elementos fundamentais para a criação da mitologia (...) no movimento comunista e nos meios do ‘contra’ em geral. (...) Nos retratos desenhados que se publicam nessa altura – e os desenhos são então mais importantes do que as fotografias, até porque estas eram mais antigas e não as havia recentes –, Cunhal aparece sempre mais novo do que já então era, com um ar um pouco de criança séria e triste, mas com um aspecto duro e decidido. Esta iconografia dá um rosto a quem o não tinha.»
Este é, então, um período de tempo em que o biógrafo se aventura por um quotidiano sem «história aparente», «feito da repetição dos mesmos gestos vigiados, numa sucessão de horas, dias e anos, confinado em duas prisões de alta segurança: a Penitenciá-ria e o Forte de Peniche». À VISÃO, Pacheco Pereira adianta que este foi o livro mais difícil: «Foi extremamente trabalhoso, quase como fazer renda... É um período sobre o qual quase não há fontes.»
Não se julgue que este livro não procura encontrar nessa rotina matéria para boas descrições e curiosas revelações sobre a atitude e a vivência íntima de Cunhal nas prisões do regime. Contudo, para ultrapassar esta ausência de actos públicos de Álvaro Cunhal, Pacheco Pereira opta por mostrar, em pormenor, a história, paralela, do comunismo português. «Não é possível escrever uma biografia de Cunhal sem ao mesmo tempo interpretar a história do PCP», adverte o autor, na nota introdutória. Pacheco Pereira fá-lo, recorrendo a todas as fontes disponíveis, como os testemunhos obtidos junto de importantes dirigentes e ex-dirigentes comunistas e a documentos organizativos do partido. Sendo o primeiro livro desta biografia publicado após a morte de Álvaro Cunhal, continua a ser uma obra «presa às fontes».
Os negros anos 50
O livro começa com uma frase que dá o mote para o período mais negro da vida do dirigente: «Estava consumada a prisão. Os presos, Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, foram de imediato levados para o Porto.» Ali, continua o relato, cativante, começa o calvário dramático dos três presos políticos, capturados numa operação policial no Luso. Começa o isolamento e a tragédia particular do ex-tarrafalense Militão Ribeiro (que morre na prisão). Segue-se a defesa de Cunhal no Tribunal Plenário, de improviso, várias horas, defendendo, ideologicamente, o comunismo e colocando no banco dos réus os acusadores e a ditadura. O que sobra da direcção comunista refaz a sua estratégia.
Um dos aspectos mais interessantes deste livro é o da luta contínua, a partir de 1949, entre os vários elementos da direcção comunista (sobretudo a subida, contestada, de Júlio Fogaça ao Secretariado) e a ruptura com a oposição não comunista (Cunha Leal, António Sérgio, Norton de Matos). Estes dois movimentos estão na origem da mais conhecida inflexão do PCP: o «desvio de direita» que só terminará quando Cunhal e os restantes evadidos de Peniche, já na década de 60, iniciam o caminho que culminará, em 1964, com o documento central da estratégia comunista: o Rumo à Vitória.
Entretanto, há que sobreviver à década de 50, a todos os títulos, um período de refluxo e de ressaca. Pacheco Pereira traz à luz as circunstâncias pouco claras dos assassinatos de Aurélia Celorico, Manuel Lopes Vital e do ex-membro do Comité Central, Manuel Domingues. A morte destes três militantes com responsabilidades na organização nunca foi, cabalmente, explicada, e decorre num período em que as «traições» (entrega de nomes e factos à PIDE) abalam a confiança na organização clandestina. É também um período de «purgas» na cúpula e de afastamento de alguns sectores intelectuais.
É neste cenário, pouco auspicioso, que vão decorrer alguns dos acontecimentos mais relevantes para a história do comunismo, como o XX Congresso do PC da União Soviética, com as suas críticas a Estaline, e a invasão da Hungria pelo Exército Vermelho. Em Portugal, são os anos em que desponta a «questão colonial» e, em 1958, «o ‘furacão’ Delgado». Quando Cunhal e os restantes nove dirigentes do PCP se evadem do Forte de Peniche, em Janeiro de 1960, o mundo mudara, e muito.
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